Monday, December 29, 2008

A saga de um povo

"-Menino o quê, infeliz, que diabo você está vendo aí? Você está vendo alguma coisa aí? Tem um buraco aí?
-Tem, tem bem em riba de meu olho direito, bem em riba, tem um negócio piscando lá dentro! Menino!
-Tem um negócio piscando?
-Tem. Não! Parou de piscar! menino! Virsantíssima! Nossa Senhora do Perperssocoro! Tudo alumiado! Menino!
-Deixe de ser colhudeiro, Nonô, você não está vendo nada aí, está vendo coisa nenhuma! Saia daí para eu ver também.
(...)
-Eu estou vendo o futuro!
-vendo o futuro? O futuro como?
-Não sei, só sei que é o futuro, é uma coisa que tem aqui que mostra que é o futuro.
-Que coisa é essa?
-Não sei dizer, é uma coisa.
-Ora, deixe de querer fazer os outros de besta, você não está vendo futuro nenhum, não está vendo é nada.
-Estou, estou, estou!
-Então diga que bicho vai dar amanhã, que bicho vai dar?
-Não é esse tipo de futuro que eu estou vendo. É como se tivesse aqui uma voz me cochichando para explicar o que tem lá dentro, mas não tem voz nenhuma, porém tem. Menino!
-Que é que você está vendo agora?
-Ladrão como um corno! Ladrão pra dar de pau, ladrão e mentiroso por tudo quanto é lado!
-Muito ladrão aí?
-Chi! Chiiii! Nem me fale! E tudo muito bem trajado, uma finura!
-Trajado como, de terno, de duque, de colete e gravata?
-De duque de diagonal, terno de gabardine, gravata de seda, alfinetes de brilhantes, botuaduras de péurulas, sapato de sorcodilo, água de cheiro de subaco de vintes conto a gota! Isso quando é paisano.
-Tem ladrão fardado?
-Nimifales! Jesus Cristo, ói cuma tem! Menino!
-Tudo entrando nas casas e metendo a mão em tudo dos outros?
-Que nada! eles nem toca no dinheiro, tudo tem uns cartãozinho, o dinheiro não tem nome de dinheiro.
-Que nome tem o dinheiro?
-Todo tipo de nome. É verba, é dotação, é uma certa quantia, é age, é desage, é numerário, é honorário, é remoneração, é recursos alocado, é propriação de reculso, é comissão, é fis, é contiprestação, é desembolso, é crédio, é transferência, é vestimento, é tanto nome que se eu fosse dizer nunca acabava hoje e tem mais coisa pra ver. Dinheiro mesmo é que ninguém fala, todo mundo tem vergonha de falar que quer dinheiro.
-Vergonha de dinheiro aí?
-Grande vergonha! Todo mundo manda o dinheiro para fora e tem tanto acanhamento que, quando alguém conta que eles mandaram o dinheiro para fora, eles ficam acanhados e mandam prender esse dito certo alguém e , se esse dito certo alguém continuar falando do dinheiro que eles malocaram, eles mandam matar esse dito certo alguém!
-Muita gente morta aí?
-Chiii! Tem uma bomba que não deixa a alma do vivente nem sair, torra a alma também. Tá escrito aqui: nada nun suferfife a uma prosão telmonucreá, nem as arminhas, as alminhas!
-Botaram a bomba aí?
-Botaram não, tão querendo botar, que é pra garantir a paz. Se ninguém se comportar, morre todo mundo, morre até as alminhas no telmonucreá!
-mas então ninguém morreu ainda, pode morrer mas não morreu.
-Morreu sim! Tá morrendo! Tem um menino aqui de oito anos que está carregando a irmã de dois anos que um americano deu um tiro sem querer, depois que outros americanos jogaram uma bomba na casa do pai dele sem querer, na hora que os americanos entraram para invadir a terra dele para salvar ele, só que não sobrou ninguém, ficou tudo salvo. Tem genet morrendo também de todo jeito, morrendo de muita fome, cada menino magro que parece taquara, tudo os aribus vindo para comer. Muito aribu gordo!
-Não tem comida aí, não?
-Não, comida tem, tem até demais. tem um pessoal louro musturando leite em pó no macadame da avenida, para ficar mais macio. Tem gente tocando fogo em pinto e afogando o pinto que faz gosto, tem gente matando ganso só pra tirar o figo, tem gente pagando para o homem não plantar que é para não ter comida demais e o preço não descer, tem gente querendo capar os outros para os outros não fazer filhos que possam comer a comida que se joga fora, tem coisa que Deus duvida aqui! tem subola e alho jogado no rio, veja você, subola e alho! Depois que eles joga no rio, eles compra outra vez, só que no estrangeiro, que é para o estrangeiro respeitar ele.
-Muito estrangeiro aí?
-Poucos, mas tudo mandando, uma coisa por demais. O sujeito gosta de uma coisa, ele vem e diz que o sujeito não gosta e manda o sujeito gostar de outra, porém com arte. O estrangeiro manda, porém não é o estrangeiro, é o dinheiro. O dinheiro manda.
-Muito dinheiro sobrando aí?
-Chiiii! Mas tudo na mão deles!
-E pra que serve esse dinheiro todo?
-Pra tudo! Você não sabe o que ele faz!
-Que é que eles fazem assim, menino?
-Ah, eles mata, eles furta, eles rouba, eles mente, eles manda e desmanda, eles pinta o caráio e nada acontece com eles. Pense aí numa coisa, que eu lhe digo se tem aqui. Pense numa coisa bem ruim aí.
-Estão matando pai de família?
-Nem lhe conto! Chiiii! Ave Maria! Chiiii! E tem ninguém podendo sair na rua, menino? Tudo saindo, tudo morto à bala!
-Criança aí, estão matando?
-Mas que é uma liquidação, esse menino! Parece mosca no vinagre! Eta, que desgraça, que desgraça, ai meus olhinhos!
(...)
Os outros, mesmo que quisessem responder, não poderiam, porque, com um grito que jamais pensara dar, batata puxou a mão da parede em que a encostara, ao sentir escorrer sobre ela um caldo espesso e quente, um caldo vermelho e ardente, um caldo semelhante a sangue, sangue porejante lentamente das paredes das ruínas da casa de farinha, derramando-se em borbotões vagarosos sobre os blocos de argamassa, saindo de todos os pontos da parede, uma cachoeira viscosa e silenciosa, sangue brotando de cada rachadura, cada ponto escuro do cimento antigo (...). No céu de Amoreiras nada se via, a não ser as constelações de janeiro em seu passeia inexorável. Mais acima desse céu de Amoreiras, onde tudo existe e nada é inacreditável, o Poleiro das Almas, bibrando de tantas asas agitadas e tantos sonhos brandidos ao vento indiferente do Universo, quase despenca da agitação que o avassalou, enquanto a terra latejava lá embaixo e as alminhas faziam força para descer, descer, descer, descer, decser, porque queriam brigar. Por que queriam brigar? Não se sabe, nada se sabe, tudo se escolhe. Tudo se escolhe, como sabem as alminhas agora tiritando no frio infinito do cosmos, que as abalança como as arraias em pinadas pelos meninos de que têm saudades. Almas brasileirinhas, tão pequetitinhas que faziam pena, tão bobas que davam dó, mas decididas a voltar para lutar. Alminhas que tinham aprendido tão pouco e queriam aprender mais. (...) O sudeste bateu, juntou as nuvens, começou a chover em bagas grossas e titmadasm todos os que ainda estavam acordados levantaram-se para fechasr suas janelas e aparar a água que vinha das calhas. Ninguém olhou para cima e assim ninguém viu, no meio do temporal, o Espírito do Homem, erradio, mas cheio de esperança, vagando sobre as águas sem luz da grande baía".

A Ba(H)ía de Todos os Santos :)

"Viva o povo brasileiro", João Ubaldo Ribeiro.

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