Monday, December 15, 2008

E uma caveira atrás da porta

A mesma coisa. A mesma coisinha, igualzinha, bonitinha, normalzinha. Chata. Cheia de memórias para contar; em cada cantinho, em cada parede, em cada bruxinha, em cada máscara africana, em cada estrela pintada, em cada taco quebrado, em cada tecla do piano... em todos os lugares, um diário invisível de sua vida, de suas dores, de suas alegrias, de suas saudades.
Exatamente igual: o mesmo cheiro. Mas sem coisinhas fofinhas, peludas e ronronantes vindo passar por entre as suas pernas. Sem a irmã para lhe dar as boas-vindas com um recado de que é para desfazer logo as malas e deixar tudo arrumado, porque ela não quer bagunça no quarto - e também não quer ser perturbada tarde da noite por causa de luzes e sons. Sem Mariazinha para abraçar e contar todas as novidades. Ele está lá, sempre carinhoso e conversador, mas nunca fica em casa.
Então está sozinha. Sozinha com as memórias de um mundo que já acabou, um mundo que não lhe pertence mais. Sozinha com os fantasmas de todas as pessoas que já passaram por ali - as risadas do quarto, as danças e as confissões da sala, os beijos na janela, os choros na escada. Sozinha com as muitas Claras também que já viveram ali -quantas pessoas diferente já fora, quantos eus, quantos sonhos?
Parece que tudo acontecera há décadas... Não era ela que se sentava naquele banquinho e ficava tocando músicas ao piano durante tardes inteiras... Não era ela que se encostava na parede e ficava olhando para o céu por horas seguidas... Não era ela que ficava rodando pelo apartamento sem parar, tentando encontrar mais alguma coisinha para pintar ou decorar... E simplesmente não era ela que ficava enrolando no quarto, com o som alto, fingindo que estudava para a irmã não reclamar... Era outra pessoa. Era uma menina. Era um rascunho do que é hoje.
E como tudo correra tranquilamente, como se sua vida tivesse um rumo certo e definido... Será que todos tinham a sua sorte, de ver todos os seus maiores desejos realizados?
***
"Eu quero morar aqui quando estiver mais velha"
"Desistiu de Londres?"
"Ah... se eu não morar em Londres, então, quero morar aqui."
"Mas é muito grande... e poluída."
"Eu não me importo. É grande, cheia de carros e cheia de prédios. E cheia das pessoas mais diferentes que eu já vi! E não faz calor."
"Então você ai deixar a gente e vai vir morar sozinha aqui?"
"Ah... Isso eu não queria... Mas tem coisas que a gente faz, né?"
"É... e eu sempre soube que você era do mundo, filha."
"Do mundo?"
"É... e acho que isso é bom para você. Mas não para a gente."
"Ah... Mas vocês podem vir me visitar o tempo todo!! E, falando nisso... Eu vou para Salvador ano que vem, né?"
"Filha... Você tá muito novinha ainda... Como é que você vai morar sozinha com treze anos?"
"Mas papai!! Eu não vou morar sozinha... Vou morar com Paula!"
"Mesmo assim... Como é que você vai se virar lá sozinha?"
"Ué... Eu não sou do mundo?"
"É."
"Então consigo me virar."
"Ah, eu sei... O pior é que não tenho dúvidas nenhuma de que você consegue se virar sozinha... Talvez eu só esteja arranjando uma desculpa."
"Desculpa? Desculpa pra que?"
"Pra você não sair de perto da gente.... Porque, quando você sair, eu sei que não vai voltar mais."

5 comments:

Fontes said...

Esse diálogo final me quebrou.

Ana Paula Saltão said...

Minha mãe que sempre me falava isso: quando você sair de casa, você num vai voltar mais.

E volta? Num volta...

Tulio Bucchioni said...

Ah que lindo, Clarita!
É muito doido mesmo perceber o qto mudamos o tempo td...e acho que isso fica definitivamente mto mais visível pra nós que mudamos de cidade o tempo todo!
O mais legal é saber que essa possibilidade vai sempre existir...
Que saudaaaaaaade!

Felipe Lobo said...

Que ótima história de se ler! Esse diálogo é incrível!

Victor said...

Tem outro mundo sem vc aqui, te esperando. =)