Friday, December 05, 2008

Sobre coisas que as palavras não exprimem

Talvez alguém pudesse inventar, de fato, uma "escrita conceitual". Plano horizontal, vertical, diagonal, isso não me interessa; só queria que as palavras não fossem tão ambíguas. Queria que as pessoas dissessem aquilo que querem dizer - e que fosse possível compreender o que elas realmente querem dizer de imediato. Queria que não houvesse o duplo sentido, o outra lado da frase, ou mesmo a linguagem corporal -com sua "double bind". Ou, quem sabe, que apenas houvesse a linguagem corporal, já que ela não mente. E queria que as pessoas fossem tão transparentes ao ponto de não conseguirem mentir ou esconder o que estão sentindo.

Mas quem sou eu para exigir dos outros sinceridade? Quem sou eu para falar de sentimentos - ou da demonstração deles?

***

Não sei... É que, há dois dias, tive um sonho estranho, um sonho que eu não tinha há tempos. Ou talvez seja um pesadelo por despertar coisas que eu tento esconder de mim mesma. E eu fiz aquilo que não fazia há exatamente um ano e dez meses.

Ao invés de me sentir melhor como achei que me sentiria, porém, fiquei pior. Talvez porque, com cada gotinha, vem uma dor tão forte que é como se eu estivesse lá de novo, naquele mesmo dia, escondida atrás do sofá, abraçando uma almofada e ouvindo os passos apressados pela casa... desejando que tudo aquilo acabasse, que meus olhos simplesmente secassem e que eu pudesse dormir para acordar e ver que já foi, que passou... ou mancando pelo jardim, minha perna doendo como se os meus pontos é que tivessem sido abertos, hipnotizada pela única luz naquela escuridão -a vela acesa na capela... até encontrar o meu pai, supresa ao perceber que ele estava parecendo tão indefeso como eu própria estava me sentindo, e fazer aquele pedido que até hoje eu me arrependo de ter feito ("Se isso não der certo, pega a sua arma e atira nela. Se você não conseguir, eu mesma atiro.")... ou mesmo parada, no meio da sala, com os olhos já secos por não ter mais o que chorar, sentindo um peso tão grande que me impedia de andar, e sentindo também aquilo que me atormenta mais -aquele sentimento de que não há nada que você possa fazer, que sou apenas um peso inútil diante de tanto sofrimento no mundo; e de injustiça também, porque não consigo entender o porquê de coisas assim acontecerem... Até Mariazinha chegar perto e falar, com os olhos vermelhos: "Não fica assim, Clarinha... Nao chora.". Mas eu não estava mais chorando; eu estava inerte, na verdade, talvez já naquele estado de vazio total. Ou talvez eu tenha tomado, naquele momento, uma decisão... não sei de que, mas tomei. E acho que não serviu de nada, porque a vida continuou normalmente apesar de eu achar isso um absurdo.

Quase dois anos se passaram e tenho certeza de que muitas Aninhas estão morrendo por aí do mesmo jeito que a minha, e é incrível como a dor pode se renovar assim, depois de tanto tempo. E talvez agora eu saiba, depois de tudo isso, que o peso que me invade às vezes, essa angústia, não passa daquele mesmo sentimento, o de impotência. Que não adianta você não usar aquela marca que usa trabalho infantil porque várias outras também usam e você nem sabe; que não adianta você fazer uma doação para uma ong hoje se os governos não tomarem medidas estruturais, pois as pessoas continuarão morrendo de fome; que não adianta você não comer carne por causa da forma como os animais são tratados porque várias outras pessoas comem; que não adianta você se preocupar com os problemas do mundo, pois essa preocupação não levara à nada a não ser ao seu mal-estar.

Então talvez fosse melhor não me abalar dessa forma; talvez fosse melhor não me importar com o trabalho infantil, com as pessoas que estão morrendo de fome na África, com as mulheres mutiladas e mal-tratadas no Oriente Médio, com os animais sofrendo desnecessariamente em todo o mundo; talvez fosse melhor, afinal, não me importar com o sofrimento alheio. Quem sabe, dessa forma, eu me sinta melhor -e as pessoas não me achem tão ingênua.

[No fundo, no fundo, eu ainda espero que isso seja mentira.
Que adianta, sim, eu ser vegetariana, e que adianta, sim, eu me importar com os problemas do mundo -contanto que eu faço algo a respeito.
E, no fundo, no fundo, não me importo com isso de ingenuidade.
Ser realista, racional e fria nunca foram coisas que eu quis ser mesmo...]

1 comment:

Alice Agnelli said...

é, claire.

comentando sobre a primeira parte do post, eu discordo totalmente.
sim, é toda essa ambigüidade do mundo que só complica e não simplifica nada. falar e não falar, dizer e não dizer, mentir não mentindo.

mas por outro lado, qual seria a graça das conversas se todas fossem sóbrias, sérias, intragáveis?!

ok, seria a graça de entender logo o que querem dizer. mas será que esse entendimento tão fácil e depressa não causaria ainda mais desentendimento?

quanto à transparência, acho justo.
mas justo até certo ponto.
porque de tão transparente, tudo seria invisível.
até os mais invisíveis dos sentimentos.

*

sobre a segunda parte do seu post... é, também discordo um pouco.

porque, claire, por mais que pareça idealista demais, acho que sim - a preocupação com o sofrimento alheio é mais do que válida e compreensível.
ingênuo é aquele que passa uma vida friamente, racionalmente.

na realidade, ainda não perceberam o quanto seria melhor sensibilizar-se ao invés de criticar aqueles que se sensibilizam. ou de chamar de ingênuos.

pobre ingenuidade.