Thursday, November 26, 2009

Sobre conceitos, preconceitos e uma terra sonâmbula

Vou falar sobre um assunto delicado aqui. Deveria pensar bem antes de escrever, estruturar minhas ideias, mas não: vou deixar que as coisas fluam naturalmente. Portanto, perdoem a minha incoerência.

Acho engraçado como as pessoas usam a expressão "baiano" aqui. Pelo que eu entendi, quer dizer "brega", mal ajustado, sem noção, algo do tipo. E, como já tentaram me explicar, não há nenhuma maldade nisso, que é só uma forma de falar e que outros adjetivos de naturalidade podiam ser usados da mesma maneira - sergipano, paraibano, etc -, mas que, por um golpe do destino, o baiano foi o felizardo de representar tal significado no vocabulário paulista... Acho engraçado de verdade, não estou sendo irônica nem nada - é que é realmente engraçado como usamos expressões de preconceito linguístico sem pensarmos de fato nelas. Como "mulato".

De qualquer jeito, aqui, isso está ligado ao nordestino. Como geralmente acontece com o preconceito linguístico, há uma carga histórica forte por trás que explica o surgimento de tais expressões - como o período de escravidão negra no país ou a grande quantidade de nordestinos migrantes para o sudeste. Mas ninguém pensa nisso, claro. Na verdade, nas vésperas da minha mudança para cá, realmente acreditava que ia ser vítima de preconceitos em várias esferas. A receptividade das pessoas, porém, fez com que esses meus pré-conceitos caissem por terra. As brincadeiras por eu ser baiana são muitas, bem como as imitações, mas realmente não vejo maldade por trás disso. Pode ser que isso aconteça por causa da esfera social que vivo; talvez, em outra esfera, eu fosse de fato sofrer com o preconceito, mas, enfim. E é claro que machuca quando eu ouço um "baiano" nesse sentido pejorativo que usam aqui, bem como quando falam algo de nordestino ou do Nordeste em sim. Não tem como não machucar: é a minha terra, e a maioria das pessoas que mais amo é nordestina. Mas é diferente... é diferente porque sinto uma certa alienação por trás disso tudo, como geralmente acontece com os preconceitos. As pessoas usam expressões como "baiano" e "mulato" sem pensar direito nelas, e fazem comentários sobre o nordeste porque, geralmente, não o conhecem.

É diferente, portanto, do preconceito que estou acostumada. Do preconceito baiano, propriamente dito. E é incrível perceber agora - apesar de que, antes, eu já tinha uma leve noção disso - de que a terra que tem a maior cidade negra fora da África consegue ser tão profunda e extremamente preconceituosa. E vou falar isso sob o ponto de vista de alguém que morou em Salvador por cinco anos, mas que pode ter tido uma visão estreita de toda a situação: existem três cidades. Há o Pelourinho, o colorido, animado e exageradamente africano Pelourinho, voltado para os alegres e por vezes ingênuos turistas, que acreditam que a Bahia é aquilo. Existe a cidade dos prédios luxuosos, carros caríssimos e abadás de R$800,00, da elite branca e pequena. E, por fim, há ainda uma Salvador dos soteropolitanos mais pobres, negros em sua maioria, que não conseguem alcançar o papel da elite branca mas que o almeja, e que também percebem a ilusão do Pelourinho. E é nessa estrutura que o preconceito se fortalece.

O que mais me chama a atenção - e que João Ubaldo Ribeiro já havia ressaltado em seu "Viva o povo brasileiro" - é que a elite da região não gosta da Bahia. Pelo menos, não da Bahia real. Podem gostar da pequena esfera social em que vivem, mas não investem na terra, e têm o desejo de ir embora o quanto antes dali - e é óbvio que não estou me excluindo disso tudo, já que também fui embora para estudar. É uma elite que não se sente baiana, mas, como diz Ribeiro, se sente descendente de portugueses, espanhóis, etc. Nunca de africanos, claro. Mas a questão não é essa. A questão é se sentir brasileiro antes de tudo e se integrar com a sociedade. O que parece que acontece é que essa parcela da Bahia tem medo do resto das pessoas - e também um certo desprezo. Na verdade, as outras pessoas praticamente não existem.

Nos colégios em que estudei, era incrível notar que eu era uma das poucas pessoas de pele um pouco mais escura. E em uma cidade em que 80% da população é negra. Incrível. E incrível como o mundo pode se segmentar de tal forma a excluir parte tão considerável dos seus viventes. E expressões como "brown", usadas para falar que as pessoas que estavam em uma festa, por exemplo, não eram bonitas, mostram a que ponto o racismo baiano se alastra. E as pessoas ainda davam risada quando eu reclamava do uso dessa expressão. Como é possível? Me chamavam de moralista. Ah, que seja.

Mas é bom notar que o próprio baiano pobre - e muitas vezes negro - é preconceituoso. E como! É quase um auto-preconceito, mas que negligencia a pessoa que está falando. Um negro falando de outro negro, um pobre falando de outro pobre. É a alienação, certo? A mesma que está por trás das expressões linguísticas... Mas uma alienação cega a ponto de que minha avó muito branca, que frequentou as altas rodas baianas, casou-se com meu avó também branco, filho de espanhol com escrava negra, teve o meu pai de pele escura e afirma para quem quiser ouvir que ele é branco. Apenas um pouco queimado de sol, só isso...

Mas, depois de falar disso tudo -negros, brancos, elite, blablabla -, tenho que perguntar: qual é a importância disso? Por que falar em cor de pele? Eu não sei, na verdade. Acho que só falei porque, de onde eu vim, essa discrepância é muito forte. E, por favor, não estou defendendo movimentos de orgulho negro e essas coisas igualmente preconceituosas... Acho que eu defenderia, se fosse pra defender alguma coisa, um orgulho baiano. Mas, como isso é igualmente perigoso - e como me recuso a usar expressões como "paulista" ou "carioca" em sentido pejorativo -, vamos colocar orgulho brasileiro... ou não, né. O melhor, na verdade, seria não haver nenhum orgulho desse tipo, apenas uma sensação de que se está vivo e que a pessoa do seu lado igualmente está, independente desses rótulos falsamente estipulados pelo território em que se nasce ou pela cor da sua pele. E talvez eu já esteja sendo um pouco anarquista demais, mas que seja. Não quero concluir nada aqui, minha proposta não é essa.

É só que tenho que sensação de que a Bahia precisa passar por aquilo que Jorge Amado descreve em "Gabriela, cravo e canela" sobre Ilhéus: a época dos jagunços, das grandes famílias dominadores, deve ficar pra trás, e a terra precisa caminhar em direção a um progresso verdadeiro, voltado para ela própria. Porque, por enquanto, a Bahia parece ser uma terra sonâmbula: está dormindo um sono sem sonhos e expectativas, mas caminha como uma morta-viva na história brasileira.

E é por isso que, muitas vezes, penso em voltar para lá após a minha formatura.
Precisam mais de jornalistas naquela terra do que aqui.

Monday, November 16, 2009

Réverie

Escrito há mais de um ano em meu diário.
Engraçado como as coisas podem parecer tão distantes depois de tão pouco tempo...
E que as coisas que nos abalavam parecem até engraçadas também, quando elas já não nos abalam mais!
Acho que apenas estou falando que não existem opções erradas
.

Aquela sala. Tudo tão iluminado, mas não tão nítido assim. É como se houvesse uma névoa. Como se minhas memórias tivessem se transformado em sonho.

O sol alto no céu por trás da grande janela.
Um piano ocupando uma parede, escuro. As notas cristalinas como gotinhas de água.
É assim que imagino as notas em minha mente, gotinhas de água muito transparentes e muito brilhantes, pingando não sei onde. A primeira vez que pensei nisso foi quando eu era muito pequena e eu e minha irmã estávamos checando algum cd-rom quando "Clair de Lune", de Claude Debussy, começou a tocar. Depois disso, não consigo pensar em outra coisa: cada nota é uma gotinha. Uma valsa é chuva , uma berceuse é um leve chuvisco... Beethoven sempre foi tempestade, independente da velocidade da música. Mas Debussy é aquele que me faz imaginar as gotinhas mais delicadas e cristalinas.
E é assim, como em sua "Réverie"; é em devaneios que me perco ao pensar naquela sala. E eu estou lá também, sentada no chão, olhando para a janela. Imóvel. Estranhamente, me imagino com o uniforme da escola. E estranhamente penso que estou pensando em ir embora. Como eu sempre fiz. Ir embora quando as pessoas começam a me conhecer a ponto de saber meus defeitos. Ou ir embora para evitar esse contato tão íntimo que sempre temi. Naquela sala, estou pensando em ir embora para ser outra pessoa.
E eu penso na frase estonteante dele. E penso no olhar reprovador dela. Ele me ama, mas não teve a coragem de dizer na minha frente. Ela me ama e teve a coragem de me mostrar friamente todos os meus segredos desvendados...

Fugi disso tudo. De um louco e de uma amiga. Fugi também da minha família e das gotas cristalinas do meu piano. Mas não virei outra pessoa ao fugir, bem como também perdi os escapes que eu tinha. Não tem como eu ir embora agora. Acho que, enfim, fui obrigada a enfrentar os meus medos.