Sunday, September 23, 2007

Cidade nossa de cada dia

"E se ao menos essa ilusão da Cidade tornasse feliz a totalidade dos seres que a mantêm... Mas não! Só uma estreita e reluzente casta goza na Cidade os gozos especiais que ela cria. O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sentimentos especiais que só nela existem! (...) Ai jaz, espalhada pela cidade, como esterco vil que fecunda a cidade. Os séculos rolam; e sempre imutáveis farrapos lhe cobrem o corpo, e sempre debaixo deles, através do longo dia, os homens labutaram e as mulheres chorarão. E com este labor e este pranto dos pobres, meu Príncipe, se edifica a abundância da Cidade! Ei-la agora coberta de moradas em que eles se não abrigam; armazenada de estofos, com que eles se não agasalham; abarrotada de alimentos, com que eles se não saciam! Para eles só a neve, quando a neve cai, e entorpece e sepulta criancinhas aninhadas pelos bancos das praças ou sob os arcos das pontes de Paris... A neve cai, muda e branca na treva; as criancinhas gelam em seus trapos; e a polícia, em torno, ronda atenta para que não seja pertubado o tépido sono daqueles que amam a neve, para patinar nos Bosques de Bolonha com peliças de trés mil francos. Mas quê, meu Jacinto! A tua Civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas , que só obterá, nessa amarga desarmonia social, se o capital der ao trabalho, por cada arquejante esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua enfaldada miséria é a condição do esplender sereno da Cidade."


"A Cidade e as Serras", Eça de Queirós.

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